Seguidores

Nuvem de Tags

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

EU TENHO CARA DE LADRÃO




Mami e eu. Foto de Celso Rodrigues

Era um fim de tarde típico de Belém. Minha irmã Iaiá, nossa amiga Jaci e eu devolveríamos uns filmes à locadora que ficava no subsolo do shopping Castanheira, próximo de casa. Um centro comercial luxuoso rodeado de periferias, inclusive o bairro onde cresci. Pra nós qualquer rua asfaltada parecia praça, quem dirá um lugar como aquele. Lembro de ter ido muitas vezes até lá com os colegas só pra brincar de se esconder, ou simplesmente pra andar por ali, pois tudo era muito caro, e quase não tínhamos como comprar nada. Naquele dia não foi diferente. Após devolvermos os VHSs fomos caminhar, viver naquele espaço nosso momento de lazer.


Entramos na loja Yamada, que é bem popular, e nisso encontramos um pacote de chocolate mm largado sobre uma prateleira da sessão de móveis. Estava aberto. Alguém comprou e esqueceu ali. Ficamos alguns minutos nos perguntando se pegaríamos ou não. Jaci insistiu que deveríamos. Pegamos. Fomos pegos em seguida. Um homem engravatado nos segurou pelo braço e nos levou a um corredor próximo dali. Com outros clientes nos olhando, como se fôssemos marginais, fomos interrogados. Tratados como ladrões. “Nós temos filmagens de vocês roubando isso”, falava o engomado. “Então pega lá a filmagem”, desafiei. O homem me olhou feio e exigiu que eu não me rebarbasse. O chicote doeu no meu coro. Me calei.


Hoje, pensando melhor, sei bem. Eles perceberam que não roubamos. Aquela loja não vendia chocolate, nem qualquer coisa que não fossem artigos de magazine. Ele ameaçou ir com a polícia na porta de casa se não trouxéssemos dinheiro no dia seguinte. Disse que aquele bombom custava o que hoje equivaleria a 20 conto. Tivemos de raspar todas as nossas economias pra "pagar" aquela quantia sem nossos pais saberem. Foi a primeira vez que percebi uma coisa: tenho cara de ladrão. Depois, inclusive como repórter, muitas vezes quiseram me prender junto com os caras que entrevistava. Ir trabalhar sem crachá era ruim. Ninguém acreditava que alguém como uma cara como a minha pudesse ser jornalista


Em 2011 fui à Espanha. Parei num orelhão de Madri pra falar com o povo de casa. Um homem veio. Me olhou de cima a baixo. Achei que era gay. Continuei. Outro veio. Me olhou mais ainda. Comecei a ficar preocupado. Continuei falando, mas agora me esforçando pra não transmitir preocupação ao outro lado da linha – minha mãe morreria. Quando me olhou o terceiro avisei que precisava desligar. Minhas pernas já estavam trêmulas. Estava longe da minha comitiva. E sabia qual olhar era aquele. Após desligar veio um guarda. Me pediu desculpas pelos olhares. Disse que ali perto anos antes haviam explodido uma estação de metrô. Dessa vez me confundiram foi com terrorista mesmo.


Tenho essa cara de ladrão não pelo sangue de descendente de portugueses oriundo de papai, mas pelo sangue africano da minha mãe. Eu sou descendente de escravos. Sou preto. Historicamente preto, de beiço grande e cabelo crespo. Da periferia ocupada por ex-escravos. Libertos sem qualquer direito à dignidade. Minha pele não tem tanta melanina e alguns me confundem com branco. Mas branco não tem cara de ladrão. Eu tenho. Sou um jornalista com cara de ladrão. As pessoas se acham inteligentes quando rotulam as pessoas assim. Eu nunca roubei. Nunca matei. Sou trabalhador. E tenho cara de ladrão. E seu racismo com isso?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

DIÁRIO DE UM SERTANEJO - 11º DIA

Sou um amazônida me aventurando no Sertão. Parte dessa aventura registrada diariamente em meus manuscritos compartilho com quem possa querer saber...

Acordei às cinco e meia, mas o sol já entrava em minha janela aberta antes disso. Estava ansioso para conhecer as profundezas do sertão. Sou e acho que sempre serei um rato urbano, mas conhecer o interior do mundo me fascina. Seria minha primeira vez onde, conforme imaginava, certamente seria um dos locais mais doloridos, fascinantes e poéticos do Brasil. Fiz questão de abrir bem os olhos e o coração. E fui, como quem mergulha naqueles rios largos, escuros e profundos da Amazônia de onde vim.

Desde os primeiros metros na estrada de chão olhei com carinho a vegetação completamente diferente da que estou acostumado. Ia tentando entender o significado daquilo. Plantas secas e entre elas árvores com folhas de verde bem vivo. Cactos ao lado de galhos floridos. Vi alguns Jegues. Como o jegue é poético. O olhar bem dentro do olho de um animal desses faz você tocar sua própria existência mais profundamente do que se pode estar preparado. É um olhar doce, prestativo, profundo, misterioso. Talvez se um jegue e uma preguiça se encararem lágrimas cairão mutuamente.

À media que o caminho se alongava a caatinga parecia dançar forró, recitar cordel. Numa viagem pessoal em meio aquilo lembrei de Gonzagão quando vi os galhos secos e as cercas de estaca decorarem a estrada. Pareciam nos dar boas vindas. À primeira vista parecia tudo coisa morta, sem vida. Mas logo havia folhas verdes de novo. Comecei a confrontar aquilo com o xote, os cordéis, as quadrilhas e todas as outras referências carregadas por mim daquele lugar onde jamais havia estado.

Comecei a pensar que caatinga é o retrato do Brasil. Basta um pequeno sereno, basta um pequeno sorriso de água para tudo ficar pleno. Inicialmente desistimos daquele lugar cheio de espinhos, cheio de galhos secos e cinza. Mas é apenas a vida em estado de dormência e adaptada escassez d’água. Basta um pouco de irrigação pra ficar tudo verde, colorido, explicitamente vivo. O sertão é uma lição de vida. Ensina que é preciso muito pouco para ser possível viver. É um cenário formado por versos com rimas fáceis, com estrofes simples, mas com conteúdo rico, vivo, inteligente.

De repente comecei a pensar que não há lugar no mundo mais verbal do que o sertão. As piadas, as músicas, o cordel, as histórias, tudo é dito, escrito e cantado de uma forma muito especial por estas pessoas de sotaque forte. O cearense então, não fala, recita. O sotaque nordestino, especialmente o cearense, foi feito para o verbo. Toda cultura nordestina é muito verbal e verbalizada. O cearense, tenho a impressão, é mais.

Se é verdade que o meio interfere no sujeito e na sujeita, se o mineiro é um tanto mais tradicionalista sob influência da firmeza das serras e o carioca é expansivo e alegre influenciado pela liberdade do mar, então eu só posso supor que a caatinga é uma obra de arte travestida de bioma. Um poema disfarçado de lugar.
_____________________
Todas as fotos foram feitas por mim neste mesmo dia.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Uma informação por favor: Onde fica a Passárgada?


"Lá o tempo espera Lá é primavera Portas e janelas ficam sempre abertas Pra sorte entrar... ...Tem um verdadeiro amor Para quando você for"
(Monte- Brow-Antunes)
"Aproveitar a tarde sem pensar na vida
Andar despreocupado sem saber a hora de voltar"
(Carlos-Carlos)

"Melhor viver, meu bem
pois há um lugar em que o sol brilha pra você
chorar, sorrir também e depois dançar
na chuva quando a chuva vem" (Jeneci)

""Leva-me tu, corremos após ti. O rei me introduziu nas tuas câmaras; em ti nos regozijaremos e nos alegraremos; do teu amor nos lembraremos, mais do que vinho; os restos te amam"
(Cânticos dos Cânticos, versículo 4)

Quando era criança demais pra ser jovem, e velho demais pra ser carregado no colo, ouvi falar de uma tal Passárgada. Não sei se foi um tal Manel ou uma tal Bandeira quem me falou dela. Um dia tomei um porre, um soco na cara ou uma tapa no peito da existência (algo assim) e decidi encontrar essa tal Passárgada sem saber que a procurava, acho. Nessa busca por me perder em algum lugar entrei num chagão ladrilhado com pedras disformes que alguns mais invejosos resumiriam a meros cacos de tijolo. Antes de chegar à Passárgada havia uma escada mal acabada à direita e uma portícula com uma escada desenhada dentro à esquerda. Parecia haver gente ali. Que bom! Seriam testemunhas oculares do meu triunfo, ainda que não fosse dado a eles o privilégio de ver.

Antes da Passárgada havia um portão de ferro de grades grossas e cadeado pequenininho. Depois dele uma porta de madeira bordada de vidro e entre eles uma mulher. Depois da porta havia um piso de madeira. Era muito aconchegante, refrescante, leve... Mas se fosse calor demais eu poderia olhar pra cima e ser abanado por um ventilador lustroso. Se o chão ficasse duro demais - por preguiça, teimosia ou algo assim - ao lado haveria uma cama macia. Mas a cama poderia ficar muito estreita ou entediante, por isso adiante poderia haver uma índia - a mesma moça da porta - preparando comida com direito a sorrisos tímidos e disfarçadamente fogosos.

Quando a comida ficasse muito cheia, por ser amigo do rei, ele poderia me arrumar um quarto espaçoso, onde num extremo houvesse livros ou fotos com recheio de lágrimas, no outro computador encantado com músicas do repertório da mãe d’água e na outra ponta uma cama grande. Caso tudo isso ficasse grande demais, por ser amigo do rei, eu poderia ter a mulher que eu amasse - no caso, a índia. Sentaria encaixado entre as coxas dela sobre aquele colchão caso algum ruído exterior me mandasse ir embora. Mas depois eu fui. E descobri como gozar com isso. Passárgada foi feita pra entrar e sair, ir e vir...