Foi na avenida Almirante Barroso que tive minha primeira
experiência como manifestante. Na ocasião, há cerca de 15 anos atrás, eu
enquanto estudante o como centenas de outras/os pelo grêmio estudantil do então
Colégio Pedro Amazonas Pedroso (CEPAP aos mais saudosos) para engrossarmos as
fileiras do MST quando fazia um ou dois anos do Massacre de Eldorado do Carajás.
Não lembro de muitos detalhes, mas recordo que mulheres, homens e crianças
marchavam já há dias para acampar em São Brás , na histórica praça do Operário.
Não sai da minha memória também que as pessoas a frente
desse grêmio eram ligadas ao PSTU, e que me senti muito bem acolhido pelas
pessoas em marcha.
Rostos simples de gente que eu via na TV como baderneiros e
que se preocupavam o tempo todo se os estudantes tinham sede, se estavam bem. Choveu naquele
dia, assim como ontem, quando caminhei pela mão inversa da Almirante que já não
é a mesma. Gritei por coisas parecidas com as que gritei outrora (Passe Livre
para estudantes, por exemplo). Se foi histórico pra mim caminhar ao lado do MST
em minha primeira passeata, foi histórico para o mundo a data de ontem: 17 de
junho.
Nunca dei azar de participar de um ato com forte repressão
policial, mas não lembro de uma na qual um ou outro indignado tenha errado na
dose. Lembro de uma que participei, contra a ALCA, que paramos em frente ao
consulado estadunidense e algumas pessoas chegaram a atirar pedras em vitrais,
arrancar gramas e coisas do tipo. Naquela época eu não gostei daquela atitude,
e qual não foi minha surpresa ontem quando, já nos primeiros metros caminhados,
um rapaz encapuzado abaixou para pixar uma mureta e foi logo repreendido por
centenas de vozes anônimas: “Sem vandalismo!”, gritavam. Porém, deixo claro, discordo do rótulo de vândalos manifestantes que reagem contra a PM, embora eu não acredite em
violência como solução a nada.
Ontem vi muita gente que me
lembrava a mim mesmo quando comecei a me rebarbar contra o sistema. Gente que
se sentia motivado a gritar palavras de ordem, mas ainda com certo
constrangimento. Gritavam, mas só no auge do coro, e comumente erravam algumas
palavras. Mas apesar daquele ar de certa forma frágil de rostos joviais, havia
um olhar perene naqueles semblantes, que é impossível de ver em qualquer outra
faixa etária com a mesma intensidae: era o olhar da novidade. O novo que não
nega tudo que é velho, mas tão pouco reafirma tudo que era dito até então. Por
exemplo, se eu fui pra rua há 15 anos puxado pelo PSTU, ontem uma das palavras
de ordem que mais ouvi foi o povo mandando a galera com as bandeiras vermelhas
tomarem no lugar que rima com “U”.
Ah, mas não poderia deixar de
falar do objetivo de mais de 20 mil pessoas que foram às ruas de Belém em
consonância com outras centenas de milhares em todo Brasil. O
povo tava na rua por causa de vinte centavos, contra a copa, contra a corrupção,
contra...; pra ser honesto comigo e com todos os outros que compartilharam por
algumas horas o mesmo asfalto sob os pés, essa é uma das diferenças mais
atraentes e ao mesmo tempo preocupante desse novo momento: não sabemos onde
isso vai dar, mas sabemos que não queremos ficar onde estamos. Eu acredito nisso. E acreditar nisso, senhoras e senhores, é ótimo.
O único congestionamento que eu
lembro de ser aplaudido em Belém é o que causa a passagem da imagem da Nazica
no Círio rodoviário, quando pessoas aparecem nas janelas e à beira da pista pra
aplaudir, homenagear e etc. Ontem eu vi muito disso numa passeata.Talvez porque o povo na beira,
sejam os que apoiavam com panos brandos nas janelas, sejam os que no fundo aguardavam uma porradinha contra a
polícia para acompanharem de camarote viam ali na imensa maioria de pessoas o
próprio reflexo. Uma gente que não quer depredar o Estado, ao mesmo tempo que
queria deixar claro que não estava nada contente com ele, ao mesmo tempo que se
demonstrava a favor das reivindicações dos “baderneiros”, mas deixaram claro
que não querem servir de massa de manobra de nenhum partido e não toleram
violência. Alguns verão nisso despolitização. Não que não seja em parte, mas
não há como negar o espírito radical disso. Radicalizar não é apenas ir para um
extremo, mas também criar outro.
DETALHES
É comum a manifestações fazer
silêncio quando se passa em frente a um hospital, mas nunca tinha visto esse
silêncio vindo de 20.000 pessoas. Não havia carro-som ontem animando. Ainda
bem. Não houve quem manipulasse as falas ou que tivesse a pretensão de querer
falar por todas/os. Assim, a recomendação do silêncio vinha de boca em boca, de
dezenas de metros à frente até o fim. Foi de arrepiar ver essa grande rede
social funcionando ao mesmo tempo que lia em muitos cartazes a mensagem “saia
do facebook”.
Eu sempre critiquei as grandes
produções cinematográficas e televisivas a respeito de atos públicos. Repare,
leitor, que a única palavra de ordem que sabem dizer na tele-dramaturgia é “O
povo unido jamais será vencido!”. Eu nunca tinha ouvido isso numa manifestação real.
Até ontem. Também havia ontem manifestantes fantasiados de “Homem Aranha”
(oi?), gente fazendo poses para fotos ao lado do delegado Eder Mauro, que para
quem é de fora, representa aquela figura do policial brabo que mata mesmo os
“vagabundo”. Há quem ache isso bonito. Pra mim ganhar fama de assassino
supostamente matando a juventude negra deveria render a ele algumas das muitas
vaias que berramos.
Talvez a manifestação mais
ignorada de todos os tempos da última noite tenha partido de um jovem rapaz,
que simplesmente parou sobre um bloco de concreto, de frente para a multidão
com uma Bíblia aberta (oi?). Jamais entenderei qual a intenção daquele rapaz,
também um radical, certamente. Mas confesso a Deus Todo Poderoso que ri dele.
Por minha culpa, minha tão grande culpa.
As únicas confusões que existiram
em todo o trajeto foram protagonizados esporadicamente pelos próprios
ativistas. Na realidade, o batalhão que acompanhou todo o trajeto mostrava
literalmente na cara que não estavam ali para brigar. Eram soldos, cabos e
quiçá alguns sargentos nitidamente fora de forma, longe do padrão utilizado
quando o Estado quer realmente bater em alguém. Houve também
xingamentos e alterações quando um repórter da afiliada da Rede Globo quis
fazer uma entrevista – nem tudo pode ser tão diferente mesmo.
Voltei pra casa com o coro mais
clichê de todos na cabeça: “O povo unido jamais será vencido”. Essa frase, que mais
parece um verso bobo de feicibuqui, simbolicamente saiu de pessoas convocadas
em grande parte através desse aplicativo. Eu ri as primeiras vezes que ouvi.
Debochei, na verdade, e me peguei subestimando a novidade. Não é de uma palavra
de ordem sofisticada que precisamos, precisamos de berros gritados que façam os
que estão à margem entender e se motivarem a virem pra avenida da luta. Independente de
qual processo vai desencadear a partir daqui, a lição que aprendi na última
noite foi que não é de pessoas num pedestal do conhecimento que precisamos, nem
de vanguardistas pretensiosos. Precisamos do povo ao nosso lado, com
todas as contradições lindas ou não que isso traga. “E precisamos todos
rejuvenescer”.